Na imagem: adaptação do quadro "Saturno devorando a su hijo", 1819–1823, do pintor espanhol Francisco de Goya, representando Saturno (na mitologia romana) ou Cronos (na mitologia graga), deus do tempo, devorando seu próprio filho por medo de ser por ele destronado.
Recorrer da decisão de pronúncia no Júri, infelizmente, é um erro.
Um importante instrumento de defesa, que deveria servir para salvaguardar os direitos dos acusados, principalmente dos presos, na prática se transforma em um nefasto mecanismo de dilação de prisões, graças a um pretenso in dubio pro societate.
Como na alegoria de Saturno, deus tempo, devorando ao seu filho, o descaso do estado com o instituto recursal criado por ele mesmo causa o despedaçamento e a morte desse mesmo instituto.
Para entender melhor, vamos lembrar como funciona um processo no júri. O rito (procedimento) do Tribunal do Júri é dividido em duas fases: 1 - instrução (judicium accusationis ) e 2 - plenário (judicium causae).
Na primeira fase, de instrução, acontecem audiências preliminares, onde o juiz ouve as testemunhas do fato e faz o interrogatório do réu.
Depois disso, as partes, defesa e acusação, apresentam oralmente ou por escrito as suas "alegações finais", dizendo porque o réu merece ir a julgamento pelo Júri ou porque não merece.
E no final de todo esse procedimento o juiz forma a sua "convicção", podendo proferir uma entre quatro decisões diferentes:
1 - Absolver sumariamente o réu: Caso o magistrado entenda que o fato não existiu, não foi crime ou o réu praticou o fato amparado por alguma excludente de ilicitude: legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de um direito, etc.
2 - Desclassificar para outro delito: Como, por exemplo, entenda não ser o fato uma tentativa de homicídio, mas uma tentativa de lesão corporal, ou seja, que o réu só queria ferir mas não matar. Assim "desclassifica" para lesão corporal e o réu responde por isso.
3 - Impronunciar o réu: Quando por ausência de provas em relação à materialidade do fato (existência) e/ou de indícios suficientes de autoria ou de participação, nega seguimento à ação penal, declarando a extinção do processo sem resolução do mérito. Ou seja, o juiz entende que por falta de provas o processo não deve seguir, mas ficar em "stand-by", aguardando novas provas.
4 - Pronunciar o réu: Entender que existem indícios suficientes de autoria e de materialidade e determinar que o réu seja julgado pelo Tribunal do Júri.
Nesta última hipótese reside o problema.
Pois, caso a defesa entenda não existir provas suficientes de autoria ou de materialidade do crime ou que existam provas que comprovem a inocência do réu, e que o juiz não deveria ter, portanto, decidido "pronunciar o réu" (encaminhar a júri), deve apresentar o recurso cabível dessa decisão, que é o denominado "recurso em sentido estrito".
Ou seja, interpõe-se o chamado "recurso em sentido estrito" ao Tribunal de Justiça para que o tribunal reveja a decisão do magistrado e zele pelos direitos do acusado, que estão sendo violados, e reconheça não haver indícios suficientes de autoria ou de materialidade ou haver prova cabal da inocência, não permitindo que o réu vá a julgamento pelo júri.
Porém, ao entrar com tal recurso, ao invés de fonte de esperaça de se obter a devida justiça, começa um pesadelo defensivo, uma via crucis para o advogado e para o preso.
Descobre-se que a maioria dos tribunais simplesmente ignora a existência dos institutos da "impronúncia", da "desclassificação" e da "absolvição sumária", e contornam sem nehum pudor o enfrentamento da questão com base num outro pretenso instituto de direito chamado "in dubio pro societate" ( na dúvida, em favor da sociedade) e mantêm, de forma sistemática, as decisões de pronúncia (encaminhamento ao julgamento pelo júri).
Tal brocado latino, in dubio pro societate, é utilizado como se fosse um instituto ou princípio sagrado do direito, mas a verdade é que não encontra amparo em nenhum canto da legislação pátria, simplesmente não existe no direito positivo, e não passa de simples e oportunista invenção forense para a justiça se esquivar da devida análise das provas e aplicar o princípio (esse sim) realmente existente: do in dubio pro reo (na dúvida, em favor do réu), cravado na Constituição da República.
O tribunais, valendo-se desse suposto "princípio", não se importam com as provas defensivas, e menos ainda com a ausência de provas acusatórias, ignorando-as por completo, tudo, para eles, deve ser resolvido somente pelo conselho de sentença, pelos jurados.
A justiça é mero duto condutor do produto acusatório à desembocar na vala do júri.
Como "Pilatos", lavam as mãos, passando a responsabilidade para jurados, cidadãos completamente leigos, decidirem o destino réu.
Pilatos viu que nada adiantava, mas que, ao contrário, o tumulto crescia. Fez com que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante do povo e disse: Sou inocente do sangue deste homem. Isto é lá convosco! - Bíblia de Jerusalém.
Mesmo havendo grandes chances de o réu ser absolvido e o julgamento se tornar em um monstro de prejuízo aos cofres públicos e à dignidade dos réus, principalmente dos presos.
Presos, aliás, que têm sua prisão estendida enquanto durar o recurso. Pois, afinal, se foi a defesa quem entrou com o recurso, se o recurso demorar para ser julgado, a demora será "culpa da defesa", não do tribunal.
E o que mais acontece, além da aplicação teratológica do in dubio pró societate, é a demora extrema no julgamento do recurso.
O julgamento de um "recurso em sentido estrito" pode levar meses e até anos para ser concluído e, até lá, se o réu estiver preso, terá que aguardar o julgamento do recurso preso; lembre-se: a defesa é a "culpada" por ter entrado com o recurso, então "não pode haver excesso de prazo quando quem deu causa foi a própria defesa".
Tudo para, ao final, o tribunal dizer que a decisão do juiz de primeiro grau está correta, pois quem tem que decidir se existem provas ou não são os jurados, afinal: "na dúvida, em prol da sociedade".
Sem contar o fato absurdo, ainda, dessa decisão ir parar nas mãos dos jurados e servir como argumento de autoridade disfarçado, pois, na cabeça do jurado leigo, se todas as autoridades e até o Tribunal de Justiça acharam que o réu tinha que ir a júri é porque ele só pode ser obviamente culpado.
O que faz do "recurso em sentido estrito" mais uma utopia do que um instrumento de defesa propriamente dito.
Não que não existam recursos que deem certo, com certeza devem existir, mas são como "cabeças de bacalhau" , ninguém nunca viu.
Não vale o risco.
E se já foi interposto o recurso, mas quer-se dele desistir, sofre-se outra nova agrura. Desistir do recurso é outra via crucis.
Desistir do recurso é um direito da defesa, inserido no âmbito de sua deliberalidade estratégica, não podendo ser questionado.
A defesa pode desistir do recurso, seja porque assumiu o processo nessa fase e sabe que manter o recurso não levará a lugar nenhum, seja porque no meio do recurso percebeu que na prática está contribuindo para a dilação da prisão do próprio cliente e reforçando nos jurados a ideia de que seu cliente é um culpado, ou qualquer outro motivo, não importa, é seu direito desistir.
Porém, a contrassenso, muitos tribunais simplesmente ignoram os pedidos de desistência ou neles colocam vários entraves, obrigando a defesa a ter que interpor habeas corpus ou mandado de segurança no STJ (Superior Tribunal de Justiça) para fazer valer o simples direito de desistir do recurso.
E quando é reconhecida e homologada a desistência do recurso, a defesa ainda tem que enfrentar o caminho burocrático da "descida" do processo até o Juízo de origem.
O que hoje dia, em tempos de processo eletrônico, se perfaz de um simples apertar de botão. Mas que, inacreditavelmente, também pode (e normalmente vai) levar meses para ser feito, muitas vezes somente mediante novo habeas corpus e/ou mandado de segurança ou reclamação na Corregedoria de Justiça, pois as secretarias alegam "excesso de trabalho" e "falta de funcionários".
E o réu vai permanecendo preso, aguardando a burocracia se movimentar.
Por isso, para evitar todo esse transtorno e não apostar a liberdade do réu nesse jogo de cartas marcadas, o mais sensato é nunca ingressar com tal recurso e renunciar ao seu prazo, permitindo que o processo seja encaminhado direto a julgamento pelo júri popular, "encurtando" um caminho que já seria inevitável de qualquer forma.
É preferível confiar no bom senso do juiz leigo do que no do juiz togado.
Ronaldo Costa Pinto